sábado, 12 de março de 2011

Passe livre

Não, não me refiro ao filme em cartaz desde a última sexta-feira. Falo de uma antiga reivindicação dos estudantes, novamente em pauta após os acontecimentos envolvendo a guarda municipal de Fortaleza e manifestantes durante o show promovido pela prefeitura na terça-feira de carnaval, ali no aterrinho da Praia de Iracema.

Apesar de já transcorridos trinta anos da minha época de estudante jovem, meu espírito contestador continua adolescente, e voltou com força total ao ler a nota de repúdio do Diretório Central dos Estudantes da Universidade Federal do Ceará (DCE/UFC) ao lamentável episódio do carnaval e toda a sua repercussão nas redes sociais.

Por que foi mesmo que os estudantes apanharam? Por protestarem contra o aumento das tarifas de transporte público e por reivindicarem o chamado "passe livre", ou seja, passagem grátis.

A prefeitura de Fortaleza orgulha-se de administrar “a única capital do país onde a meia passagem é ilimitada para alunos da rede pública e particular, e sem obrigatoriedade de fardamento escolar”. Maravilhoso, não acha? Não, não acho.

Enxergo nessa propaganda três equívocos: 1) Estudantes não deveriam pagar “meia passagem” para ir e voltar da escola; 2) A concessão de meia passagem “ilimitada” gera a falsa sensação de cumprimento de dever público, mas quantas vezes mesmo um estudante precisa se deslocar por dia?; 3) Dispensar o fardamento ou outra condição que caracterize o estudante pode gerar fraudes que acabariam por onerar o serviço e prejudicar os próprios estudantes.

Para que passe livre? Isso significaria investir em Educação, coisa que não é prioridade por aqui. O Brasil investe percentual inferior a 5% do PIB (dados de 2008 do MEC) em educação básica. Como será no resto do mundo? A Suécia é o país que mais investe em educação. As escolas são gratuitas, bem como o material escolar, a refeição e o transporte (existem poucas escolas particulares). Só em 2008, gastou 7,6% do seu PIB, superando os Estados Unidos, a França, o Japão e a Itália.

Em Nova York (USA), segundo o conteúdo do site do Departamento de Educação (o equivalente as nossas Secretarias Municipais da Educação), são as próprias escolas públicas que distribuem os cartões de passe livre para os estudantes no início de cada semestre letivo. Como será que isso funciona na prática?

Conversei, por email, com a educadora norte-americana Gael Kavet, que trabalha em uma escola pública em Nova York. Gael é orientadora educacional da Escola de Ensino Médio East Side Community, de onde esclarece que “o passe livre para estudantes em ônibus ou metrô tem a finalidade de transportar o aluno para a escola, não podendo ser usado para outros destinos, nem durante os fins de semana e feriados”. O estudante pode ainda usar o cartão para um deslocamento diário extra, desde que se trate de atividade curricular, como ir a uma biblioteca pesquisar sobre um trabalho da escola. Pergunto como a prefeitura controla isso e quais as sanções para quem descumpre as regras. “Se um aluno for abordado pela polícia de trânsito pela utilização indevida do cartão de estudante (fora do dia ou horário de aula), é emitida uma intimação”. E acrescenta: “O mesmo se aplica a um adulto usando um cartão de estudante”. Casos foram registrados em que os pais usaram o cartão de seus filhos: “Quando um cartão-estudante é utilizado no ônibus ou metrô, uma luz indica que este tipo de cartão está sendo utilizado. Obviamente, se um adulto estiver usando o cartão, o condutor do transporte vai perceber”.

Conversei também, por email, com Frèdèrique Alfonsi, PhD em Economia e professora da Universidade de Caen, França, mãe de duas meninas em idade escolar, que conta que em seu país “o transporte escolar é subsidiado pelos governos dos departamentos (os nossos Estados), então os estudantes pagam somente uma taxa mínima por sua utilização”.

Na contramão dos países deveras preocupados com índices de desenvolvimento socioeconômico, o Brasil prefere privilegiar idosos e portadores de deficiência com passe livre nos transportes públicos. A medida social aparentemente responsável toma ares de eleitoreira e clientelista, enquadrando-se na ultrapassada visão de remediar ao invés de prevenir. Chamo a isso, repito, de falta de investimento em Educação. Em tempo: nas cidades norte-americanas, idosos e deficientes adultos têm tarifa reduzida, e não gratuita.

Enquanto a cidade de São Paulo registra a maior rede de escolas públicas do país − cerca de 1.500 −, que atende a, aproximadamente, um milhão de estudantes, a cidade de Nova York, que perde em número de habitantes para São Paulo (tem três milhões menos que a metrópole brasileira), possui quantidade superior de escolas − algo em torno de 1.700 −, que juntas atendem a mais de um milhão de estudantes, de acordo com os sites dos respectivos órgãos municipais do ensino.

A partir desses dados, podemos identificar algumas questões do velho dever de casa que nos negamos a fazer. Em tempo de arrocho econômico, temos o dever de lutar contra qualquer tipo de corte no orçamento para a Educação. É sabido que cada R$ 1 investido em Educação gera para o país R$ 1,8 no PIB. Voltando ao passe livre, isso significa, grosso modo, que ao proporcionar hoje transporte público escolar grátis para todas as crianças e jovens, não será necessário amanhã “dar esmola” para os idosos, o que só diminui a sua autoestima.

Vamos continuar com os argumentos? O relatório da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) de 2010 declara que o Brasil (que não faz parte da organização) investe 80% menos em ensino fundamental, se comparado a países como Austrália, França, Estados Unidos e Chile, estes entre os 33 países membros da organização, cujo objetivo é a promoção de políticas públicas para o desenvolvimento econômico mundial. E aí vem outro problema brasileiro: além de aplicarmos mal os nossos recursos em Educação, continuamos a insistir em práticas pedagógicas ultrapassadas que alimentam a velha escola tradicional − tão duramente criticada por especialistas da atualidade −, que prioriza a memorização e o intelectualismo, produzindo muitas vezes sujeitos incapazes de estabelecer conexão entre o conteúdo estudado e o mundo real.

No ranking de 2008 de Educação medido pelo Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), desenvolvido e coordenado pela OCDE, o Brasil aparece, como sempre, nos últimos lugares. Por que a educação escolar em nosso país é tão deficiente, apesar dos governos, a cada gestão, adotarem medidas que se propõem “revolucionárias”? O físico alemão Andreas Schleicher, responsável pela aplicação da prova do Pisa, declarou naquele ano à revista Veja que “o Brasil foca no irrelevante”, ou seja, os estudantes brasileiros estudam e decoram coisas que não conseguem aplicar na prática. E isso num mundo globalizado que, segundo ele, exige “a capacidade de análise e síntese”. Não vivemos mais na era industrial, quando as áreas do conhecimento eram estanques e exigia-se uma prática repetitiva de tarefas. A escola atual deve formar pessoas que “aprendam a aplicar esse conhecimento em novas e avançadas áreas”, complementa o especialista.

Fatos como esses nos fazem refletir sobre as ideias pragmáticas do pensador norte-americano John Dewey (1859-1952), que se mostram ainda bastante inovadoras. A educação, entendida como instrumento que proporcione à criança condições de resolver por si mesma os seus problemas; e a escola, vista não como uma ferramenta de preparação para a vida, pois a escola é a própria vida, ou seja, vida, experiência e aprendizagem devem caminhar juntas.

Retomando a questão inicial sobre a reivindicação dos estudantes de Fortaleza, destacamos as palavras de protesto da jovem F. B., na rede social Facebook, quando cobra um ativismo mais responsável, com mais diálogo, bom senso e maturidade dos jovens manifestantes.

Particularmente, prefiro estudante que grita a jovem apático e alienado. Mas entendo quando F. conclama outro tipo de conscientização. Os estudantes poderiam utilizar suas jovens e fortes gargantas de forma mais competente, exigindo direitos que ultrapassem o “passe livre”. Deixar de pensar no aqui e agora, pois assim estarão fazendo o jogo político dos governos dos últimos anos. Que escancarem o bocão e gritem por melhoria real no ensino, briguem por boas escolas públicas de educação básica, professores comprometidos e competentes, e pelo fim de subsídios e isenções fiscais para escolas particulares. Escola particular deveria ser restrita a pequenos grupos específicos (religiosos, por exemplo) e com altíssimo poder aquisitivo, funciona assim em todo o mundo. Todas as crianças e jovens deveriam estudar em escola pública e de excelente qualidade, a começar pelos filhos de prefeitos, governadores, presidente da República e ministros de Estado, e também de médicos, advogados e profissionais liberais, e ainda de empresários e trabalhadores de qualquer nível social. Mais uma coisinha: não existe passe livre nem meia-passagem para universitários nos países ditos desenvolvidos. O compromisso maior é com a educação básica (Fundamental+Médio). Lá também não tem meia-entrada em cinema, teatro ou show. Quando muito, crianças menores de 12 anos têm tarifa reduzida no cinema. Agora dá para entender por que não tem analfabetismo?

A Educação no Brasil precisa ser valorizada e priorizada. Vamos lá, marqueteiros, levantem a bola da Educação! Gastamos mais com segurança do que com Educação. Mas aí já são outros quinhentos. Fica para o próximo post!

Fontes:
http://portalsme.prefeitura.sp.gov.br/ http://schools.nyc.gov/ http://www.andifes.org.br/ http://www.oecd.org/
Crédito foto: Rafael Cavalcante (jornal o Povo)

3 comentários:

  1. Eita que esse foi a fundo ....
    Parabéns! Como sempre, matéria SUPER fundamentada e minuciosamente escreita! Adorei!

    ResponderExcluir
  2. Amiga,passei por aqui!Sentimos sua falta ontem.Grande artigo,muito bem escrito e esclarecedor.Gostei muito!Bjooo,Valéria Andrade.

    ResponderExcluir
  3. Oi, Valéria, obrigada por visitar este espaço e agradeço também os elogios. Senti também não estar com vocês. Até a próxima! Bjos

    ResponderExcluir